Especialistas explicam o tribunal do júri da boate Kiss: 'Já entrou para a história jurídica do Brasil'


Em janeiro de 2013, 242 pessoas morreram e 636 ficaram feridas após um incêndio atingir uma casa noturna em Santa Maria. Julgamento começa nesta quarta (1º), em Porto Alegre. G1 aborda alguns pontos, como o que é dolo eventual, por que o local do júri foi alterado e que impactos a distância pode gerar no julgamento. Começa na quarta-feira (1º) o julgamento de quatro réus no caso da boate Kiss, quando, em janeiro de 2013, 242 pessoas morreram e 636 ficaram feridas após um incêndio atingir a casa noturna. Eles foram denunciados por homicídio com dolo eventual e tentativa de homicídio. O g1 acompanha ao vivo o tribunal do júri direto do Foro Central de Porto Alegre. A seguir, esclarece alguns pontos do processo com especialistas na área criminal. LEIA MAIS: Tragédia da boate Kiss completa 8 anos Quem são as 242 vítimas O que esperam as famílias das 242 vítimas do incêndio na boate Kiss sobre júri em Porto Alegre: 'Justiça' O que esperam do julgamento os sobreviventes do incêndio na boate Kiss: 'Não é o fim, mas é definidor' Para o professor de processo penal na Escola de Direito da PUCRS, Felipe Oliveira, independentemente dos desdobramentos, este tribunal de júri já causa impactos na justiça brasileira. "A decisão que vier desse julgamento vai ter um peso muito grande em termos históricos. Um fato extremamente triste e que entra para a história do judiciário. Seja uma sentença condenatória ou uma sentença absolvitória, esse processo já entrou para a história jurídica do Brasil", conclui. "É um caso que vem para no futuro ser debatido em outras instâncias judiciais fora do Brasil. Ele é um caso paradigmático", acrescenta Fabiano Clementel, advogado e também professor na mesma instituição. Foro Central de Porto Alegre Imprensa/TJRS O que é dolo eventual Os quatro réus — Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Lodeiro Hoffmann, sócios-proprietários da Kiss, Marcelo de Jesus dos Santos, músico da banda Gurizada Fandangueira, e Luciano Augusto Bonilha Leão, produtor musical — são julgados por 242 homicídios e 636 tentativas de homicídio (artigo 21 do Código Penal). Na denúncia, o Ministério Público havia incluído duas qualificadoras — por motivo torpe e com meio cruel por emprego de fogo. Porém, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) as retirou e converteu para homicídios simples com dolo eventual. "Embora os acusados possam ter admitido o risco de causar a mortes das vítimas, não há provas suficientes nos autos de que tenham, suficientemente, admitido a possibilidade de asfixiar as pessoas para causar-lhes excessivo sofrimento", escreveu o ministro Rogério Schietti Cruz em voto. Dolo eventual é a terminologia para quando os acusados sabem que suas ações podem causar a morte e, mesmo assim, assumem este risco. "Ele pratica uma ação, prevê a ocorrência do resultado e assume o risco, se desimportando do que vier a acontecer. Costumamos dizer que, no dolo eventual, o sujeito está indiferente", explica Fabiano. Plenário do Foro Central de Porto Alegre onde ocorrerá o julgamento da Kiss Lilian Lima/g1 RS Em relação às penas, porém, não há distinção do homicídio por dolo direto, e elas podem variar de seis a 20 anos. O que pode alterar é a valoração dessas penas pelo presidente do júri, que a faz com base no modelo de três fases do Código Penal: pena-base, circunstâncias agravantes e atenuantes e causas de aumento e diminuição. "Claro que a quantificação vai variar. Quando o juiz valora uma dessas circunstâncias do homicídio direto, deve valorar com maior peso do que quando se trata de homicídio com dolo eventual. Ao menos, em teoria, porque, se tivesse dois casos, a reprovação por dolo direto seria maior", aponta Felipe. O que as defesas devem sustentar no julgamento é que, apesar do enquadramento como dolo eventual pelos ministros do STJ, os seus clientes não agiram com intenção, ou seja, com dolo. O rebaixamento para homicídio culposo pode reduzir a pena, em caso de condenação, para um a três anos. "A culpa pressupõe uma ação que se dê por imprudência, negligência ou imperícia. Embora tenha previsão do resultado, não concorda com ele, não espera que vá ocorrer", diz Fabiano. Os professores esclarecem ainda que a reclassificação para um crime de pena mais branda pode ocorrer ao longo do tribunal do júri, mas não a elevação para algo mais grave. Cálculo da pena Embora sejam centenas de vítimas, tanto para os homicídios consumados como para as tentativas, o crime é o mesmo. Logo, não haverá uma multiplicação da pena, mas aplicada a pena mais grave das penas cabíveis (no caso, o homicídio doloso) aumentada de um sexto até a metade. "Tivemos uma ação que provocou quase 1 mil resultados. Quer dizer que, pela legislação, o juiz vai considerar a questão do concurso formal de crimes. Leva em consideração a pena de um dos crimes e, a partir daí, fazer um aumento que pode ser de 1/6 a 1/2, nos homicídios consumados, e diminuição pela tentativa de 1/3 a 2/3", pontua Fabiano. No cálculo do modelo trifásico, a pena a ser cumprida, em caso de condenação, é calculada pelo magistrado a partir das respostas dos jurados que compõem o Conselho de Sentença. São sete pessoas que votam e prevalece a escolha da maioria, ou seja, mesmo que haja unanimidade, a decisão será definida em quatro a três. "A decisão sobre serem condenados ou não compete a sete pessoas do povo, que serão escolhidas no dia. Essas pessoas serão questionadas se os réus serão absolvidos ou não. Decidindo que devem ser condenados, caberá ao juiz-presidente fazer a dosimetria da pena", acrescenta o professor. Por isso, é possível que seja estabelecida uma pena-base pelos crimes a um réu e, no veredito, ele receba pena final diferente de outros. "A culpabilidade é o juízo de reprovação, ou seja, quanto nós reprovamos da conduta de alguém. Ele valora a pena de cada um dos réus, que deve ser analisada individualmente. Se um deles tem uma pena de 25 anos, não significa que todos vão ter uma pena de 25 anos", esclarece Felipe. Isto vale, também, para diferentes resultados. É possível que, ao final do júri, réus sejam condenados e outros, absolvidos. Mudança de local Juiz Orlando Faccini Neto presidirá o tribunal do júri em Porto Alegre Márcio Daudt/TJRS A transferência do local do tribunal do júri de Santa Maria, onde ocorreu o fato, para Porto Alegre causa mais repercussões do ponto de vista emocional do que jurídico, apontam os professores. Para Felipe, por exemplo, o desaforamento é considerado "imprescindível" para se buscar um julgamento minimamente equilibrado. "Quem visitou Santa Maria mesmo muito tempo depois do fato percebe como essa tragédia ainda é muito viva dentro da comunidade. Em um julgamento, precisamos buscar uma imparcialidade de quem vai julgar. A retirada de Santa Maria busca justamente equilibrar essa situação, no sentido de colocar a defesa em posição de um pouco mais de igualdade. Não tenho a menor dúvida de que, se o júri fosse realizado em Santa Maria, o resultado seria pela condenação porque dá para compreender como a comunidade daquela cidade se sentiu", diz. Já Fabiano cita um estudo que teve acesso, segundo o qual caso fosse mantido o julgamento no município de origem, era grande a probabilidade de que os integrantes do corpo de jurados tivessem alguma relação, ainda que indireta, com algumas das vítimas ou familiares. "O desaforamento é utilizado em situação excepcionais, mas o caso da boate Kiss tem peculiaridades porque rompeu fronteiras municipais, estaduais e nacionais. Trazer para Porto Alegre foi uma tentativa de reduzir prejuízos com relação a ter um julgamento de fato justo e imparcial, que é o que nós esperamos", destaca. Demora no julgamento Outro efeito negativo destacado pelas famílias é a demora no andamento do processo. Quando o julgamento iniciar, às 9h de quarta, terão passados 3.230 dias desde o incêndio. Fabiano acredita que isso não traga prejuízo ou influência no resultado. "O efeito temporal traz um prejuízo social muito maior do que um prejuízo jurídico, que é, para as mil famílias dilaceradas, ficar esperando uma resposta por tanto tempo", pontua. Neste período, o processo teve inúmeras etapas, entre apresentação da denúncia, recursos, embargos e pedidos de desaforamento e desmembramento do júri. O que, segundo Felipe, obedeceu os trâmites normais. "A demora deste processo, para mim, guarda relação direta com o tamanho da tragédia, a quantidade de mortes, de tentativas que se atribuem aos autores, toda a repercussão. É um processo muito extenso, com muita carga emocional, todas as questões que envolvem o próprio desaforamento. Se pega só a data do fato e a data do julgamento, parece uma demora inconcebível, mas, diante das peculiaridades do caso, é aceitável", opina. Além disso, eles destacam, seja qual for o resultado ao final do julgamento, é possível que haja recurso de ambas as partes: Ministério Público e advogados dos réus. "Essa decisão não vai ser definitiva. Embora tenha uma resposta, seguramente tanto a acusação como as defesas terão a possibilidade de recorrer dessa decisão", aponta Felipe. Além disso, de acordo com Fabiano, a sentença deve ter pouco impacto na criação de jurisprudências para casos semelhantes. Para ele, a principal decisão foi a confirmação do tribunal do júri pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Como o voto dos ministros é fundamentado, o fato de terem entendido pelo julgamento para apurar as responsabilidade de homicídios com dolo eventual — e não culpa — gera mais consequências do que quaisquer respostas dos jurados. "A decisão do STJ que levou o processo a julgamento já traz consequências maiores do que qualquer definição ou decisão que os jurados venham a tomar", diz. Boate Kiss Juliana Borgmann/G1 O que diz o Ministério Público Para o MP-RS, Kiko e Mauro são responsáveis pelos crimes e assumiram o risco de matar por terem implantado "em paredes e no teto da boate espuma altamente inflamável e sem indicação técnica de uso, contratando o show descrito, que sabiam incluir exibições com fogos de artifício, mantendo a casa noturna superlotada, sem condições de evacuação e segurança contra fatos dessa natureza, bem como equipe de funcionários sem treinamento obrigatório, além de prévia e genericamente ordenarem aos seguranças que impedissem a saída de pessoas do recinto sem pagamento das despesas de consumo na boate". Já Marcelo e Luciano foram apontados como responsáveis porque "adquiriram e acionaram fogos de artifício (...), que sabiam se destinar a uso em ambientes externos, e direcionaram este último, aceso, para o teto da boate, que distava poucos centímetros do artefato, dando início à queima do revestimento inflamável e saindo do local sem alertar o público sobre o fogo e a necessidade de evacuação, mesmo podendo fazê-lo, já que tinham acesso fácil ao sistema de som da boate". O Ministério Público lista ainda, na denúncia, outros 10 itens que caracterizam o dolo eventual — quando, mesmo sem querer o resultado, a pessoa assume o risco de causá-lo —, como a boate não apresentar saídas alternativas ou sinalização de emergência adequada, uso inapropriado de material inflamável, funcionários não terem treinamento para situações de emergência, evacuação ter sido bloqueada por seguranças e equipamentos e exaustores estarem obstruídos, impedindo a dispersão da fumaça tóxica. O que dizem as defesas? Jader Marques, que defende Kiko Spohr, diz que o julgamento será a oportunidade para que seu cliente dê sua versão do que aconteceu. "Desde 27 de janeiro de 2013, Elissandro Spohr tem vivido a angústia de ser acusado de ter atuado dolosamente para a ocorrência de um dos episódios mais tristes da história do país. No dia 1º de dezembro, o Kiko poderá falar da sua vida até aquele fatídico dia 27 e da angústia que tem sido esse período de espera pela oportunidade de explicar tudo o que aconteceu. A defesa e Elissandro apenas aguardam o início dos trabalhos", disse Marques. Já Mario Luis Cipriani, que representa Mauro Hoffmann, sustenta que ele não tinha qualquer participação na rotina da empresa. "A defesa espera um julgamento com serenidade e com respeito a todas as partes, tendo a certeza de que Mauro não teve qualquer participação nos fatos denunciados. Era um investidor e não administrava o estabelecimento. Como sócio-quotista, sem qualquer participação na rotina da empresa, não teve nenhum ato decisório que o ligue ao nexo causal descrito na denúncia, e, por isso, além de outros inúmeros fatores, a defesa entende que Mauro não deveria ser submetido ao júri popular", afirma Cipriani. O advogado Jean Severo defende que Luciano Bonilha Leão foi uma vítima no processo. "Nós trabalhamos com a absolvição do Luciano. O Luciano, no nosso sentir, é uma grande vítima também nesse processo. Não tem nada a ver com essa situação. Nunca foi proprietário da casa ou músico. Ele era uma pessoa que prestava serviços para banda. Então, o Luciano tem que ser absolvido desse júri que sem dúvida nenhuma deverá ser um dos mais longos do país", sugere Severo. A advogada de Marcelo Jesus dos Santos, Tatiana Vizotto Borsa, informou ao g1 que prefere não se manifestar. Vídeos: Tudo sobre o Caso Kiss

Especialistas explicam o tribunal do júri da boate Kiss: 'Já entrou para a história jurídica do Brasil' Especialistas explicam o tribunal do júri da boate Kiss: 'Já entrou para a história jurídica do Brasil' Analisado por Blog em novembro 28, 2021 Classificação: 5

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